ENERGIA
Projetos produtivos e
pesquisas acadêmicas tentam colocar o país no mapa mundial do gás sustentável,
apontado como o combustível do futuro
Léo Ramos Chaves
O Brasil está fazendo um
esforço para entrar no mapa global de produção de H2V (H2 de hidrogênio e V de
verde), combustível limpo com potencial para atender demandas do setor elétrico
e automotivo com baixo impacto ambiental. Até o final deste ano, a EDP Brasil,
uma das empresas líderes do setor de energia no país, planeja iniciar as
atividades em uma unidade-piloto de produção de H2V em São Gonçalo do Amarante,
no Ceará. O hidrogênio será obtido por meio da eletrólise da água, um processo
químico que utiliza corrente elétrica para decompor a água em seus
constituintes, hidrogênio (H, formando H2) e oxigênio (O, formando O2)
existentes na molécula de água (H2O). Quando o processo de eletrólise emprega
fontes renováveis de energia, como eólica, solar ou biomassa, o hidrogênio é
classificado como verde. A usina da EDP utilizará energia fotovoltaica e terá
capacidade para produzir 22,5 quilos (kg) de hidrogênio por hora. O investimento
previsto é de R$ 41,9 milhões.
Frequentemente apontado como
o combustível do futuro, o hidrogênio tem alto poder calorífico, quase três
vezes superior ao do diesel, da gasolina e do gás natural. Ao ser transformado
em energia – alimentando um motor a combustão ou em qualquer outra aplicação –,
não emite gases de efeito estufa (GEE). O hidrogênio residual liberado na
atmosfera, em contato com o oxigênio, resulta em vapor-d’água.
Elemento mais abundante do
Universo, o hidrogênio é raramente encontrado de forma isolada na Terra, mas
está presente em inúmeros compostos, incluindo água, combustíveis fósseis e
diferentes tipos de biomassa. A obtenção do gás, nesses casos, depende dos
processos envolvidos. O mais comum deles é a reforma a vapor, uma reação química
de hidrocarbonetos, comumente gás natural, com água. O hidrogênio produzido por
essa via é denominado de cinza, uma vez que seu processo de conversão libera CO2 na
atmosfera, ou azul, quando o gás carbônico gerado durante sua produção é
capturado e armazenado geologicamente.
O hidrogênio verde produzido
na usina-piloto cearense será utilizado para substituir parte do carvão mineral
que abastece a Usina Termelétrica do Pecém (UTE Pecém). “É um projeto de
pesquisa e desenvolvimento [P&D] que nos permitirá entender o ganho
energético proporcionado pelo hidrogênio, com poder energético mais de quatro
vezes superior ao do carvão”, diz Cayo Moraes, gestor de operação da EDP.
A usina-piloto de H2V também
permitirá à companhia observar a viabilidade técnica, regulatória e econômica
da produção do combustível. A expectativa é que a unidade forneça os subsídios
necessários para a decisão sobre a implementação de uma planta em escala
industrial no estado. Nesse caso, o hidrogênio poderá ser exportado para
companhias energéticas europeias, gerar combustível veicular ou abastecer
empresas industriais.
O projeto é visto por
especialistas do setor energético como o primeiro de uma série de iniciativas
voltadas à produção de hidrogênio verde no país. Apenas o governo do Ceará já
soma 14 memorandos de entendimento com grupos privados interessados em produzir
o combustível no estado. “Talvez nem todos se viabilizem. Mas se a metade dos
acordos se tornar efetivo, teremos o equivalente a uma Itaipu em operação no
Ceará entre 2025 e 2030”, declara Roseane Medeiros, secretária-executiva da
Indústria da Secretaria do Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Estado do
Ceará (Sedet). A hidrelétrica de Itaipu, a maior do país, tem potência
instalada de 14 gigawatts (GW).
Rio Grande do Norte, Piauí,
Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul também
informam possuir memorandos assinados com grupos geradores de energia. A
corrida pela atração de projetos de produção de hidrogênio verde é global.
Chile, Japão, Alemanha, Holanda, Estados Unidos, Coreia do Sul, Austrália e
China são alguns dos países que anunciaram programas nacionais de estímulo ao
desenvolvimento tecnológico e à produção de H2V.
Participação ínfima
O mundo soma 520 projetos de usinas de hidrogênio, segundo o Hydrogen Council,
associação que reúne representantes dos maiores produtores do gás. Se
confirmados, demandarão investimentos de US$ 160 bilhões. A estimativa da
associação é que a produção do combustível ultrapasse 600 milhões de toneladas
por ano (mt/ano) e responda por 22% da demanda mundial de energia em 2050, o
que permitiria uma redução de 20% nas emissões de GEE no mundo. As projeções da
Agência Internacional de Energia Renovável (Irena) são mais modestas. Para ela,
o setor irá produzir 409 mt/ano em 2050, o que responderá, nos cálculos da
entidade, por 12% da demanda global de energia.
Atualmente, a contribuição
do hidrogênio na matriz energética mundial é ínfima. Praticamente todo o
hidrogênio produzido, pouco mais de 100 milhões de toneladas anuais, é
utilizado com finalidades químicas em processos industriais, como o refino de
petróleo, na produção de fertilizantes, em siderúrgicas e na indústria química.
Especialistas preveem que o
processo produtivo de H2V predominante nos próximos anos será o de eletrólise
da água – o mesmo proposto para a usina-piloto cearense. Esse método será
obtido principalmente por plantas equipadas com eletrolisadores (equipamentos
responsáveis pelo processo de eletrólise) abastecidos por fontes de energia
renovável, garantindo que todo o processo seja isento de GEE (ver infográfico).
Uma das principais barreiras
para maior oferta de hidrogênio verde no mundo é a necessidade de ganhos de
maturidade tecnológica na cadeia produtiva do hidrogênio, informa o relatório
“Geopolitics of the energy transformation: The hydrogen fator”, divulgado pela
Irena em janeiro. Outra é o alto custo produtivo e logístico.
Segundo a Agência
Internacional de Energia (IEA), o custo do quilo do hidrogênio cinza é de pouco
mais de US$ 1 – o que permite que seja competitivo em
relação ao gás natural. O hidrogênio azul custa em média US$ 2,3 por quilo. O
quilo do hidrogênio verde fica entre US$ 3 e US$ 8, dependendo da fonte de
energia utilizada e a região do mundo onde essa energia é produzida. A
expectativa da Irena é que a ampliação da oferta de energias renováveis no
mundo e ganhos de escala produtiva tornem o hidrogênio verde competitivo com o
azul em 2030 e, no decorrer da próxima década, os custos produtivos se
aproximem do apresentado pelo hidrogênio cinza.
De acordo com o Plano
Nacional de Expansão de Energia (PDE 2031), elaborado pela Empresa de Pesquisa
Energética (EPE), instituição ligada ao Ministério de Minas e Energia, o Brasil
reúne condições para produzir hidrogênio verde mais barato que a média
internacional. O custo estimado do H2V – uma vez que ainda não há produção
efetiva – está entre US$ 2,2 e US$ 5,2 por quilo no país.
“A popularização do
hidrogênio se dará por necessidade. Vivemos uma emergência ambiental e o mundo
já percebeu que não é possível mais depender de combustíveis fósseis para gerar
eletricidade e abastecer veículos”, diz o engenheiro Paulo Emílio Valadão de
Miranda, diretor do Laboratório de Hidrogênio do Instituto Alberto Luiz Coimbra
de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (Coppe/UFRJ) e presidente da Associação Brasileira de Hidrogênio
(ABH2).
Eletrolisadores
Uma oportunidade para reduzir os custos da produção de hidrogênio é aumentar a
eficiência dos eletrolisadores. Pesquisadores do Centro de Desenvolvimento de
Materiais Funcionais da Universidade Federal de São Carlos (CDMF-UFSCar), um
dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP,
estudam materiais capazes de reduzir o consumo de energia no processo químico
de decomposição da molécula da água. Como explica a química Lúcia Helena
Mascaro Sales, diretora de pesquisa do projeto, um dos melhores materiais
catalisadores – substâncias que aumentam a velocidade das reações químicas na
eletrólise – são os metais nobres, principalmente a platina. Níquel, cobalto ou
molibdênio também podem ser utilizados associados a ligas de ferro ou como
sulfetos com ótimo desempenho.
A equipe da UFSCar pesquisa
o uso de materiais como óxido de titânio modificado com sulfeto de molibdênio
ou diferentes ligas compostas por níquel, cobre, molibdênio e ferro. “Em escala
de laboratório, demonstramos que é possível reduzir significativamente o
consumo de energia na eletrólise da água”, diz Mascaro. A petroleira
anglo-holandesa Shell, copatrocinadora com a FAPESP em outro projeto de pesquisa
do qual Mascaro participa, sobre portadores densos de energia, tem interesse em
testar os catalisadores desenvolvidos em plantas-piloto em Amsterdã, nos Países
Baixos, e em Houston, nos Estados Unidos.
Carro é abastecido com hidrogênio em uma estação de combustível em Antuérpia, na BélgicaJasper Jacobs / Belga MAG / AFP via Getty Images
Carro é abastecido com
hidrogênio em uma estação de combustível em Antuérpia, na BélgicaNa
Universidade Federal do Ceará (UFC), a professora Adriana Nunes Correia, do
Departamento de Química Analítica e Físico-química, também investiga materiais
metálicos capazes de aumentar a eficiência e reduzir custos dos
eletrolisadores. A proposta da pesquisa, ainda em fase inicial, é utilizar
células de eletrólise microbiana, empregando microrganismos como
biocatalisadores, para produzir hidrogênio a partir de esgotos domésticos ou de
efluentes industriais. A ideia é transformar a energia química do esgoto em
corrente elétrica, que possibilita a obtenção do gás. “O processo permitiria
produzir hidrogênio e, simultaneamente, tratar resíduos orgânicos”, afirma
Correia.
Pesquisas com foco em
hidrogênio verde também são feitas na Universidade Federal do Paraná (UFPR). O
químico Helton José Alves, coordenador do Laboratório de Materiais e Energias
Renováveis, dedica-se ao estudo de novas rotas tecnológicas para a produção do
combustível. Uma delas recorre a bactérias acidogênicas para degradar a
biomassa residual proveniente de efluentes industriais.
A investigação rendeu a
publicação de dois artigos no periódico International Journal of Hydrogen
Energy. Os trabalhos abordam a produção de hidrogênio a partir de água residual
de cervejaria. “A grande vantagem é reduzir os custos de produção e economizar
recursos hídricos”, diz Alves. O processo produtivo seria indicado para a
produção de hidrogênio como solução energética para a própria indústria onde o
efluente é gerado.
Outro caminho estudado para
produção de hidrogênio é usar o método conhecido como reforma a seco do biogás.
Alves explica que o sistema prevê o uso do metano e do dióxido de carbono
presentes no biogás para a geração de gás de síntese, uma mistura de hidrogênio
e monóxido de carbono. O processo ocorre em reatores com catalisadores
metálicos à base de níquel, a uma temperatura entre 700 e 800 graus Celsius.
Posteriormente, o gás de síntese é purificado para obtenção de hidrogênio.
“Junto com parceiros, pretendemos instalar uma unidade-piloto capaz de produzir
1 kg de hidrogênio por hora ainda em 2022”, antecipa Alves. Ao contrário do
sistema convencional de reforma a vapor do gás natural, o sistema a seco não
demanda água.
O estudo de rotas produtivas
de hidrogênio que não dependem de água pura em seus processos é de grande
relevância e acompanhado de perto pelos profissionais do setor. De acordo com a
Irena, para produzir 409 milhões de toneladas anuais de hidrogênio verde e
suprir 12% da demanda mundial de energia em 2050, será necessário o consumo de
algo entre 7 bilhões e 9 bilhões de metros cúbicos de água por ano. O total é
menos de 0,25% do consumo atual de água doce. Pode parecer pouco, mas é um
volume impactante em um mundo onde esse recurso está se tornando escasso.
Projetos
1. Divisão
de Pesquisa 1 – Portadores densos de energia (nº 17/11986-5); Modalidade Centros de Pesquisa em
Energia; Convênio BG E&P Brasil (Grupo Shell); Pesquisadora
responsável Ana Flávia Nogueira (Unicamp); Investimento R$
8.282.252,10.
2. CDMF – Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (nº 13/07296-2); Modalidade Centros de Pesquisa,
Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Elson Longo da
Silva (UFSCar); Investimento R$ 34.869.423,03.
Artigos científicos
SANTOS, H. L. S. et al. NiMo-NiCu
nimo-nicu inexpensive composite with high activity for hydrogen evolution
reaction. ACS Applied Materials & Interfaces. v. 12, n. 15, p.
17492–501. 27 mar. 2020.
SALOMÃO, A. C. et al. Towards highly efficient chalcopyrite photocathodes for water
splitting: the use of cocatalysts beyond Pt. ChemSusChem. v. 13, n.
21, p. 4671-9. 4 nov. 2021.
ARAÚJO, M. A. et. al. Improved
photoelectrochemical hydrogen gas generation on Sb2S3 films modified with
an earth-abundant MoSx co-catalyst. ACS Applied Energy Materials.
v. 5, n. 1, p. 1010-22. 13 jan. 2022.
ARANTES, M. K. et al. Treatment of brewery wastewater and its use for biological
production of methane and hydrogen. International Journal of Hydrogen
Energy. v. 42, n. 42, p. 26243-56. 19 out. 2017.
ESTEVAM, A. et al. Production of biohydrogen from brewery wastewater using
Klebsiella pneumoniae isolated from the environment. International
Journal of Hydrogen Energy. v. 43, n. 9, p. 4276-83. 1º mar. 2018.
ALVES, H. J. et al. Overview of hydrogen production technologies from biogas and
the applications in fuel cells. International Journal of Hydrogen
Energy. v. 38, n. 13, p. 5215-25. 1º mai. 2013.
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